14 de dezembro de 2012

Desencontros.

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Você parece absorto demais em enrijecer sua pose de garoto autossuficiente. A cena me faz rir em deboche, porque apesar das maledicências e moléstias um contra o outro, eu sei te desfazer e te ler meticulosamente - todas as tuas entrelinhas, todos as tuas linhas tortas e mal redigidas. Sou eu que tenho a habilidade de montar o quebra-cabeça de mil peças que é você. Eu conheço todas as tuas caras e bocas, sei toda a analogia por trás do seu trincar da mandíbula quando o estresse atinge o auge, toda a síntese por trás de seu rolar de olhos, e aprecio todo o nervosismo camuflado em seu gesto singular de tamborilar os dedos. Você sempre foi hiperativo, e eu costumava brincar com o fato de sua mão cheia de espasmos nunca parar quieta. A idéia de que vivemos um tempo em que partilhávamos uma piada me agrada, e eu aprisiono a imagem do seu sorriso no antro do meu consciente. Dos seus diversos sorrisos, esse sempre fora o meu preferido, por justamente ser aquele velado para mim. Você tem um sorriso pra ela também? Não responda, por favor, estou fora da razão, é apenas o álcool se manifestando. Você parece desconcertado, seu olhar desfocado falha em esconder a amargura que você sustenta quando me olha com saudade. Está aí mais uma vez o lance de eu-te-conheço-mais-do-que-a-mim-mesma-e-isso-é-assustador. Você empina o nariz tentando, de uma forma equívoca e falha, retomar o ar de arrogância e superioridade que costuma exalar. Mas não adianta. Eu te toco e você desfalece. E eu percebo que você me repele, me empurra, me abomina apenas pelo fato de se sentir vulnerável com minha proximidade. Você era então um desacreditado e me conheceu. Maldita garota, você disse, com suas peculiaridades e manias, e seu jeito estranho e inapropriado de me tomar pela mão pra ver o mundo. O comentário me faz rir. Maldita garota que ousou amar alguém como você, logo você, tão ríspido e arrogante, tão entorpecido das dores do mundo, tão embevecido de si próprio. Você endireitava a pose e seguia seu teatro improvisado, tentando viver a vida na base de falas decoradas e um final já projetado e eu permanecia na retaguarda, imaginando o porquê do seu medo do desconhecido. Eu queria entender, te juro. Acho que foi assim que passei a te amar - tentando te entender. Foi te entendendo que eu enxerguei você em sua profundidade: um garoto quebrado. Quando te questionava sobre o que havia acontecido, você agarrava a nicotina e tragava ávido. Eu apenas sabia: a vida havia acontecido. E ela, tardiamente e inevitavelmente, acabou acontecendo pra mim. Por anos o ajudei a combater seus demônios internos, e você acabou virando meu próprio demônio - te amei e esse amor me engoliu. Até o infortunado dia da minha desgraça: sua partida. Simples assim; virou pelos calcanhares e se foi com um muito-obrigado-quem-sabe-um-dia-eu-te-ligo. E você ligou. Como eu já suspeitava, a julgar pela sua instabilidade e incapacidade de encerramentos. Tinha receio de concluir suas artes, borrados e afins por não ter visão pra o recomeço, uma nova obra, por isso sua carreira artística foi à ruína. Sua vida inteira foi feita de coisas incompletas porque você nunca conseguiu ser inteiro. Você nunca soube lidar com o nunca mais, o fim, a ruptura. Não sabia seguir adiante porque nunca soube pra onde ir - e daí se vai pra onde? -. Mas, ironicamente, você também nunca soube permanecer. Nossa história é marcada por partidas. Minhas, suas. A gente se afasta, some, se procura em outros corpos, conhece novos amores, você mais que eu (já que você me estragou pra essas coisas de romance), rompe relações porque chega ao ponto de que a gente se toca que a pessoa não somos nós dois e tudo parece errado, então vamos pro bar mais próximo, temos uma conversa fiada com um estranho qualquer que nos dá seu número e a gente parte com a promessa barata de te-ligo-outro-dia-desses. A gente vira umas duas esquinas e tropeça pra de volta na vida um do outro. É sempre assim: a gente sempre encontra o caminho de volta um pro outro. Mas por alguma razão maior, após aquela noite, você não voltou. Você passou a me tratar como aquela camisa feia que guarda no fundo do armário e que eu tanto odeio. Você me trancou em você e resolveu me esquecer; comprar outra camisa mais bonita e cheirosa. Você repetia seu discurso ensaiado: não fomos, não éramos pra ser. Mas nada nunca vai ser tão certo quanto somos um pro outro. Eu até tentei seguir seu jogo, busquei pelas tantas almas corrompidas um ser adequado aos meus padrões e quase consegui ser feliz. O sujeito era legal, requintado, gostava de vinho, e eu sei que você odeia vinho, o que o fazia perfeito para mim. Perfeito demais. O cara me saiu muito educado, piegas, e bem conservado. Ele me dava náuseas, eu me sentia em estado de dormência profunda com o pobre coitado. Passei o resto da minha vida não sentindo mais nada, e Deus, tudo o que eu queria era uma fricçãozinha contra minha pele pra me sentir viva. Então você me liga e me desperta pra vida novamente, eu esqueço toda essa pseudo felicidade e ligo o motor do carro - ele começa a rugir tomando vida, e eu no momento sou o carro e estou sendo acordada pra realidade. Eu pensei no que deveria dizer, em todas as palavras que pairaram diante a mim nesse meio tempo, mas você está se saindo bem com o silêncio. Então eu não sei o que aconteceu exatamente nesses anos em que eu ia e você vinha, ou você ia e eu esperava, mas aí fica a pergunta: a gente se perdeu ou nunca se achou?

31 de outubro de 2012

Você é a ferida aberta que eu carrego no peito.

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Eu estava circundada por papéis que me ladeavam, repletos de palavras antes significantes. Alguns ainda tinham a marca das minhas lágrimas bem cravada, relembrando-me as noites em que passei insone tentando extrair a dor do peito. A tinta borrada ao longo das linhas marcava a amargura que elas continham. Folhas rasgadas, desgastadas e atiradas para um canto com uma brutalidade acentuada pela raiva. Raiva da pessoa que um dia fora, raiva da pessoa que assim me fizera. Você envergava um fino casaco de malha que o fazia parecer insensível ao frio cortante que o vento trazia. O seu cabelo, de um amarelo quente e profundo, coloria a paisagem. Outros 15 minutos teriam passado. Eu bebia um café, você um licor. Como traduzir o silêncio de nossa colisão inequívoca? Toda sentença parecia morrer com esse baque. Seus olhos moldaram-se num semblante melancólico, representando com relutância o sofrimento nos excêntricos azuis dos olhos. ‘I’ve got to walk away while there’s still hope’, você canta baixinho enquanto afasta uma mecha para trás da minha orelha com o indicador. Meu corpo inteiro responde ao seu toque, e eu sinto uma corrente elétrica correr entre nós. Parece que alguém havia derramado um balde de água gelada sobre minha cervical. Franzi a comissura dos lábios, untando toda ousadia em minhas palavras. Embora não houvesse nada de particularmente alegre em meu tom naquele instante, apenas o ressoar de um engano, cravado com eloquência no meu timbre. ‘This is my last goodbye’?, retruquei com o refrão da mesma canção, transformando a melodia num questionamento traiçoeiro. Você desliza seu polegar pela minha pele, como se para recolher uma lágrima que traí-me e cai pela minha face pálida, e trinca a mandíbula. Parece guinchar as palavras, e mesmo quando estou pronta para recebê-las, o som sai e você o empurra para dentro. Sinto-me transparente, desesperada e errante. Olhei pra você fixamente por instantes. Agora reconheço que essas ocasiões passarão a ser escassas – talvez nulas. A efemeridade desses momentos me fatiga. Seu semblante é cansado – sempre o encarei como alguém capaz de suportar o peso do mundo nas costas. E, no entanto, seus olhos são tão encantadores quanto disseram; sua figura é esbelta; e isto ninguém nunca disse: sua vitalidade, fluída e estranha. No mais languido de seus movimentos – até em repouso – há algo sagaz e abrasador. A imagem me enoja, molesta; você é a minha ruína. E, de um jeito que eu não posso esconder, porque eu não tenho abertura pra estar com alguém. Embora você me dê a sensação que eu posso fazê-lo: eu não consigo. Em um segundo, eu estou contigo. Nós somos infinitos. Mas ao mesmo tempo, me pesa, me sufoca: você não é meu inteiramente. Como eu tenho sido sua. Meus devaneios são interrompidos para que grossas gotas de água começassem a cair pausadamente, eu jazia encostada na vidraça suja, olhando tristemente a chuva que caía lá fora. (...) A lembrança tem um formato réptil, e serpenteia lastimosa no antro do meu consciente. Ela rasteja seu caminho a cima, mas eu insisto na necessidade do som de esmagamento feito por minhas botas. Agora, recomposta do meu abalo, sinto-me estranhamente familiar, como se estivesse a ignorado durante muitos anos em perfeito conforto. A dor me desarma. Desde esse momento, a solidão preencheu-me mesmo não estando sozinha. O vazio ocupou-me mesmo tendo motivos para me sentir cheia. A tristeza consumiu-me, apesar dos motivos que tenho para que a felicidade leve a melhor. Tudo voou, tudo me escapou por entre os dedos, tudo evadiu. Hoje, meu amor, chove em mim.
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